RODRIGO BARBOSA CAMACHO

Um tanque de energia

4/29/2019

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Em meados dos anos noventa, o cigano chefe porteou o prédio onde vivia a minha avó Odete. De calças pretas, sem camisa, levou o seu grande facalhão à boca, trincando bem o metal entre os dentes, para assim se agachar e conseguir amarrar os sapatos - como tem ser - quando se está prestes a enfrentar a brigada de intervenção rápida. As histórias de droga à solta pelo bairro de Santo Amaro eram comuns, tanto, que até eu, com uns dez anos de idade, convenci os meus colegas, de que umas pastilhas de flúor (para os dentes) que trouxera no bolso um dia, eram "droooooga!". A administração da escola passou-se quando a brincadeira se alastrou e deu corpo a um tipo de Reaganismo à moda da guerra fria.

Hoje voltei a Santo Amaro para ver que não está muito diferente. A escola continua igual, com aquele grande matagal fantástico, as grades lá se mantêm e a sensação de se lá entrar é, tirando uma ou outra cara, basicamente a mesma. A grande diferença será talvez terem cortado a sumaúma gigante que lá havia logo à entrada. Mesmo que nos atacasse com os seus grandes frutos pesados, espinhosos e alergénicos, gostava muito dela. Senti a falta da sumaúma. Entretanto lá me instalei e a máquina montou-se, pacientemente esperando pelo primeiro intervalo da manhã. Fiz alguns testes de som e de imagem para ter a certeza de que, quando chegassem os cerca de cem pequenos, a coisa estaria pronta para os receber em fluidez total, mas enganei-me quanto à minha memória do barulho que geram setenta crianças eufóricas. A instalação teve de se esforçar - já quase a bater no máximo - para competir com aquela alegria toda.

Em segundos, após o toque, vi-me cercado de uma tribo de mini-humanos curiosos. Perguntavam por tudo, mexiam em tudo, queriam envolvimento total, não se calavam, não aguentavam resistir mais àquele saco misterioso. Queriam chegar ao ecrã, queriam manipular todos os botões e testar a maleabilidade e tensão dos cabos, testavam a robustez dos tubos e das braçadeiras de aço… Acredito piamente que qualquer um se passaria com isto, que lhes berraria aos ouvidos, que até ousaria espremer o braço de um deles, a servir como exemplo. A magia de tudo isto é que sei duplamente muito bem como é ser macaco, assim como tenho uma fé incorrupta na potencialidade que têm as crianças para a organização emergente. Passámos o primeiro intervalo inteiro a reconhecer a cultura de uso do "instrumento" que, entretanto, se tornou lugar. Debatemo-nos com a primeira limitação, que se punha intransponivelmente: éramos, por certo, muitos mais do que aqueles que poderiam participar diretamente. Claro, isso causou uma certa ansiedade no conjunto, mas rapidamente todos foram percebendo que havia algo a fazer, articuladamente, quanto a isso.

Em primeiro lugar, perceberam que em nada adiantaria implorarem-me por uma chance individual no saco, nem por serem mais fortes (ou mais velhos), nem por terem chegado primeiro. Não lhes valeu de nada agarrarem-me os braços e puxarem-me a roupa, pedindo - diretamente à figura de poder - por uma oportunidade; tal qual se pede a santos (ou a deus) uma cura, ou um milagre. Repeti a mesma cantilena uma dúzia de vezes: "Organizai-vos! Falai a outros dos vossos problemas e regressai quando forem muitos!". Não posso dizer que tenha sido tiro e queda, mas lá se foram formando os grupos, organicamente, em torno dos problemas, que nem sempre eram os mesmos entre amigos. Assim que me chegavam em dezenas, com propostas concretas, sabiam que tinham de verbalizar tudo aquilo para que aparecessem coisas escritas no ecrã. Até aqui o processo provara ser mais simples do que o esperado. O mais difícil foi mesmo a seleção dos lutadores que representariam o grupo no combate contra o problema que haviam proposto. Quase sem excepção, todos queriam uma pitada daquele protagonismo heróico. Contudo, fiquei contente por ver que um dos grupos até se montou de forma a desenvolver um sistema rotativo, que oferecia uma resposta rápida quanto à gestão do cansaço. Funcionou tão bem, que derrotaram a "poluição do ambiente" com 10,000 pontos!

É claro que sempre há os que fariam tudo para conseguir deitar as mãos ao saco mais uma vez. Esses, deixei-os a tratar da parte audiovisual. Pedi-lhes que filmassem e fotografassem tudo, com rigor e esmero, o que cumpriram excepcionalmente. Deixei-os o desafio que o fotógrafo Henrique Metinidez propõe com seu método de trabalho. Na captura, há que constar a causa, a consequência e os observadores, todos em planos diferentes. Estas crianças compreenderam bem a importância deste pedido, e levaram-no a níveis fantásticos. Devo um agradecimento especial à Inês, que coordenou o departamento dos média como uma profissional!

Como é óbvio, os problemas foram tantos, mas creio que alguns inscrever-se-ão na minha memória por muito tempo. A "pobreza", assim como a "riqueza", foram problemas e assim o foram a "fama" e as "promessas mal cumpridas", as "mentiras" e a "morte de muitos animais". Descobri que "souce" quer dizer "droga" [que é para a polícia não descobrir], e "controlar a raiva" foi um grande clássico, mas nada bateu ver crianças enraivecidas a lutar contra as "catástrofes naturais"… Ficavam loucos da cabeça - e do corpo - cada vez que o gráfico batia, ocasionalmente, no topo do ecrã. Regra geral, a modelação escolar, também lhes predispunha a ler (em coro) todas as palavras a negro. Do tipo: o problema era "dinheiro" e eles liam (gritando) "capitalismo!!!" ou "subserviente!!!".

O Paulo - diretor da escola - veio dizer-me, mais para o fim, que estava a ponderar instalar um saco de boxe permanente lá no pátio. Espero que este tipo de caos controlado - um verdadeiro exercício de cidadania e de participação e produção política - o tenham deixado inspirado. Uma nota que acho importante, neste sentido: tem piada que os mais "rufias", os "sem dono", os "cabeças de vento", os "bandidos", eram precisamente os que mais se convertiam em verdadeiros líderes, responsáveis e sensatos, cuidadosos e acertados no processo democrático. Mobilizavam com velocidade e agilidade os grupos, ativavam a energia coletiva quando havia ameaças de desintegração, e delegavam os combates, quando eles (e elas!) acumulavam já demasiados dedos inchados. Não garanto que todos tenham tido a melhor experiência das suas vidas, mas no final do dia, quase que montaram um bloqueio para que não me conseguisse escapulir com a máquina. O Nuno e o Henrique do som, assim como o senhor Jardim da carrinha tiveram de me ajudar a fintá-los a todos por entre tubos, cabos, grandes ecrãs e braçadeiras de aço. Quase, quase a perfurar o cerco, houve vários que me agarraram para me perguntar se voltaria no dia seguinte… Não pude mentir…
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Participações no Tanque, foto de Maria Inês
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Participações no Tanque, foto de Maria Inês
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Participações no Tanque, foto de Maria Inês
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Participações no Tanque, foto de Maria Inês
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    Autor

    Rodrigo B. Camacho

    sobre

    Quando alguém declara que tem um problema, imaginamos talvez que essa pessoa esteja entalada numa situação complicada, que algo se encalhou, que está impedido, ou mesmo (muito querido o nosso fatalismo) que “está tudo arruinado”.

    Sentimos que a vida se entrava perante um problema, assim que as coisas se emaranham e renunciam o seu funcionamento, descontinuando-se. É todo um bloqueio, uma barreira, uma impossibilidade intransponível!

     
    Contudo, por meio
    de uma escavação
    etimológica feito pela palavra 
    problema adentro, o Rodrigo descobriu que, na sua concepção, a ideia daquilo que um problema deveria ser baseia-se verdadeiramente numa ação bem física, de facto.

    O verbo grego 
    probállō
    é composto por pro (diante, frente) e bállō (lançar, projetar).
    Por isso mesmo, em 
    PROBLEMA, está toda a gente desafiada a resgatar a natureza proativa do termo a atirar umas batatadas aos seus próprios problemas.
     
    Tudo isto fica muitíssimo prático numa instalação audiovisual, cuja interface é – lá está – um saco de boxe! Aproxime-se dele e ser-lhe-á pedido algum problema que por ventura venha a ter no momento.

    Enquanto lhe é entregue um par de luvas, o seu problema já pairará num grande ecrã, e lá permanecerá, pacientemente à espera de qualquer que seja a coisa que você lhe venha a fazer.

    ​ 
    PROBLEMA é um apelo à ação, e é uma advertência, pois frequentemente esquecemo-nos de que temos um corpo; um que é simultaneamente físico, biológico, animal, social, cultural, político...

    O Rodrigo vê este trabalho como uma exploração poética da dicotomia entre as dimensões físicas e intelectuais e quer que a sua experiência sirva de tentativa de reconciliação dos nossos seres multidimensionais
    .

    Rumando via a um sentido de unidade, do infinitésimo ao de figura mais gargântua, do mais simples ao mais complexo, abstrato ou mesmo indescritível, todos os problemas serão bem-vindos para que sejam atirados adiante.
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