RODRIGO BARBOSA CAMACHO

Regresso à Escola

4/23/2019

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​Quando era mais novo, houve um dia em que reparei que uns turistas espanhóis se escandalizavam do outro lado da rua. Atormentadíssimos das suas vidas, pareciam terem-se apercebido repentinamente de que um mau olhado da pior espécie lhes tinha caído em cima. Mas não era nada disso. Estávamos na Rua João de Deus, eu de um lado, eles do outro. Eu, do lado da Francisco Franco, que na altura era a minha escola secundária, eles… só se esbranquiçavam ao fitar o nome do senhor - outro - que não era, de facto, o que lhes tinha praguejado o país com uma ditadura daquelas, mesmo à moda do século XX. O meu Francisco Franco não era o deles, estava tudo explicado. O da minha escola tinha sido artista, uma escolha de carreia algo diferente, no que toca a criar um impacto no mundo.

Quando andava lá na Francisco Franco (artista), eram as ciências e tecnologias que me ocupavam a maior parte do tempo. Por entre namoricos e umas complicaçõezitas que se prendiam com desmedidas quantidades de agressividade na camada jovem, não era a arte mas a física, a química e a matemática que me enchiam a cabeça de tudo. Ao mesmo tempo, estudava piano logo ao lado, no então coloquialmente chamado "Gabinete". Agora, passados mais de dez anos, volto à escola e lá está ela, intacta, com o seu robusto traço arquitectónico do Estado Novo (e talvez por isso os espanhóis se tenham convencido de aquele ter sido um edifício dedicado a uma figura fascista), porém sempre certa no seu charme; assim me o ditou a minha memória emocional. Hoje, trouxe de volta uma versão re-escrita do meu passado vivido cá. Voltam a música, os cálculos, o pensamento sistemático, a arte (que entretanto percebi ter sempre estado cá), a juventude, toda aquela energia, e alguma violência inerente. Claro, este projeto chama-se PROBLEMA, e é esperado que batamos nele…

O dia não poderia ter corrido melhor. A parte da manhã foi reservada ao "engodo". Os alunos, no seu primeiro dia de aulas após a Páscoa, foram chegando e, em grupos, iam-me fitando a tomar conta do "monstro", bem calados - eu e eles - sem grandes comunicações, nem verbais, nem corporais. Sabia que, junto da máquina, era eu também objeto de interesse zoológico. Que nem macaco, trepava a estrutura para apertar todas as braçadeiras de segurança uma última vez, e tinha o casaco amarelo todo sujo de pó metálico eletrolizado, uma cicatriz gorda no sobrolho [das montagens de ontem] e as mãos em estado de mina. Era de facto uma figura insólita na casa. Entretanto, finalizados os testes com o ecrã e com as colunas de som, alguns alunos tiveram o privilégio de arregaçar as mangas e experimentar sucintamente o mecanismo. Nisto, fui fortuitamente reencontrando velhos professores, a quem, um por um, lhes finalmente agradeci uma grande parte de mim. Ah! E também dei de caras com a Ana Salgueiro que, há mais de um ano atrás, viu nascer este projeto! Não falámos grande coisa, pois o horário hoje foi um terror de coisa doce, mas fica por certo para depois.

Na hora de almoço, as professoras Cristina e Sandra levaram-me a comer uma sopa de trigo num restaurante local. Uma coisa do outro mundo, do melhor que há. Deu bem para reabastecer as energias, e ainda conseguimos espremer uma entrevista os três para um programa de rádio mesmo antes da grande enchente que foi a sessão da tarde. A partir daí foram só problemas. A "matemática" foi um, outro foi "a vida que não andava para a frente", outro ainda "a pressão social"… e por aí adiante, foram as águas escoando da comporta emocional de cada um. De notar: o trabalho de equipa e o espírito de cooperação foi um dos pontos marcantes do dia. O gesto de se tomar um problema alheio como seu, e de o "segurar" até que outros por sua vez nos salvassem dele, foi surpreendentemente recorrente, sempre com efeitos estéticos, éticos e poéticos, muito, muito poderosos.

Faz-se tarde novamente, as palavras já são muitas, mas foram ainda mais os problemas e as emoções que, ao lhes batermos, se soltaram. Não tenho forma de falar de tudo e não quero escolher mais, por isso fica como está. O meu papel nunca foi o de relatar concretamente o que quer que fosse, e este é apenas um fio de memória. Estou, sim, extremamente grato por ter tido a oportunidade de hoje voltar à escola que me lançou tão bem ao mar, e de ter partilhado com um montão de gente incrível uma quantidade estonteante de experiências estupendas. Muito obrigado.
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Workshop "Corpos Sensíveis", foto de Rui A. Camacho
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participações, foto de Rui A. Camacho
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participações, foto de Rui A. Camacho
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gráfico final de uma participação, print screen
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    Autor

    Rodrigo B. Camacho

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    Quando alguém declara que tem um problema, imaginamos talvez que essa pessoa esteja entalada numa situação complicada, que algo se encalhou, que está impedido, ou mesmo (muito querido o nosso fatalismo) que “está tudo arruinado”.

    Sentimos que a vida se entrava perante um problema, assim que as coisas se emaranham e renunciam o seu funcionamento, descontinuando-se. É todo um bloqueio, uma barreira, uma impossibilidade intransponível!

     
    Contudo, por meio
    de uma escavação
    etimológica feito pela palavra 
    problema adentro, o Rodrigo descobriu que, na sua concepção, a ideia daquilo que um problema deveria ser baseia-se verdadeiramente numa ação bem física, de facto.

    O verbo grego 
    probállō
    é composto por pro (diante, frente) e bállō (lançar, projetar).
    Por isso mesmo, em 
    PROBLEMA, está toda a gente desafiada a resgatar a natureza proativa do termo a atirar umas batatadas aos seus próprios problemas.
     
    Tudo isto fica muitíssimo prático numa instalação audiovisual, cuja interface é – lá está – um saco de boxe! Aproxime-se dele e ser-lhe-á pedido algum problema que por ventura venha a ter no momento.

    Enquanto lhe é entregue um par de luvas, o seu problema já pairará num grande ecrã, e lá permanecerá, pacientemente à espera de qualquer que seja a coisa que você lhe venha a fazer.

    ​ 
    PROBLEMA é um apelo à ação, e é uma advertência, pois frequentemente esquecemo-nos de que temos um corpo; um que é simultaneamente físico, biológico, animal, social, cultural, político...

    O Rodrigo vê este trabalho como uma exploração poética da dicotomia entre as dimensões físicas e intelectuais e quer que a sua experiência sirva de tentativa de reconciliação dos nossos seres multidimensionais
    .

    Rumando via a um sentido de unidade, do infinitésimo ao de figura mais gargântua, do mais simples ao mais complexo, abstrato ou mesmo indescritível, todos os problemas serão bem-vindos para que sejam atirados adiante.
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