RODRIGO BARBOSA CAMACHO

Problema no Jardim

4/26/2019

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​O Jardim Municipal guarda consigo um mundo em árvores. Hoje lá estive o dia todo, e por isso notei que passa por ele um mundo inteiro de pessoas. Acordei cedo para montar tudo no fosso, só que os meus amigos técnicos Duarte e Henrique tiveram as suas reservas quanto a isso. O Ecrã não poderia correr o risco de "estalar" com o sol, e por isso recolhemo-nos debaixo daquela grande pirâmide pós-moderna. Fica mais grandioso - o que não foi planeado - mas ainda se sente um resquício de confronto íntimo sugerido pela envolvência anfiteátrica em forma de arena.

O padrão de participações foi bem diferente do dos dias passados. Uma coisa é dizer "venham cá a hora tal", outra é esperar por todos, ou melhor, "pescar" o dia todo. É bem divertido - diga-se - abordar pessoas que, a meio da pausa da manhã ou da tarde, se passeiam por jardins tão abundantes, com "há algum problema?, resolve-se já!". Pensam que lhes estou a desafiar que nem o rufia mais arrojado, mas logo compreendem a justificação para tal descaramento. A maior parte diz que vai pensar melhor, muitos, que não têm tempo para pensar. Há quem me diga que não pode reclamar, o que me aflige até ao tutano, e ainda há os que, com alguma razão - e isto dá-se mais para o final da tarde - me reclamam por estarem todos partidos. O que há que nos parte? O que há que no repara? O que há que nos cura?

Estou a falar de adultos, primeiramente. Com os jovens a coisa já muda, e com as crianças ainda mais! A honestidade, a frescura, a franqueza, a solidez, a autenticidade, a alegria, a força, a criatividade, a flexibilidade do pensamento, a resposta na ponta da língua, a intuição perfeita, a animalidade inteligente, a esperteza, a safadeza brincalhona, o saber tácito, o ser e o estar num todo. As crianças sabem tudo em potência e navegam a velocidade de cruzeiro se não lhes pusermos cangalhos à frente. Um viva às crianças! Foi neste espírito que as duas turistas helvéticas Ece e Abulena se inspiraram para colaborar comigo numa porradona a três contra "haver crianças que têm de lutar para serem crianças". Nisto, quase que por magia, dá-se num ápice o enchimento do jardim por uma torrente de turmas inteiras de primeiro ciclo. Inundaram toda a área pisável com correrias livres, explorações de todas as formas e texturas; imaginaram-se mundos inteiros em minutos, em centímetros, em degraus, em nada. 

Alto lá! É preciso dizer que foi a Bali quem, bem cedo, abriu o dia com um problema peculiar… Os rapazes da sua turma foram alvo de algum desanuvio matinal. A seguir, a Aminah, de  Leicester [lê-se Lesster], apareceu com os dois irmãos, para me dizer que um deles era especialmente chato. Levei-a a reconhecer que afinal a culpa não seria toda dele, e que, o que a tirava do sério eram mesmo todas as pessoas irritantes, em geral. Já na companhia das turmas da Camacha, três raparigas juntaram-se em campanha, para me convencerem a deixá-las lutar contra eles gostarem mais dos jogos do que de delas! Já outra, avançou, com doses de coragem tremendas, anunciando os problemas que tinha no amor, o que tantas outras prontamente corroboraram, apoiando-a vivamente na causa. Os rapazes, por sua vez, confirmavam o dito e queixavam-se de perderem muito no jogo…

De uma forma ou de outra, todos foram encorajados a desenvolver comigo um exercício de democracia flexível, que tanto sondava o grupo pelo problema mais recorrente, como se discutiam as importâncias e urgências de certos problemas, que acabavam por figurar de forma especial. A universalidade da pobreza e do racismo levaram grupos volumosos a esmurrar o saco, como raramente se vê… A meio da azáfama, um rapaz perguntou-me se era hacker, disse-lhe que sim. Ele coçou a cabeça por um minuto e depois puxou-me o braço para me dizer: "é bom que o senhor use as suas capacidades de ser hacker para coisas boas, porque há hackers que só se mexem para roubar dinheiro às pessoas".

O fechar da loja foi ao estilo do Senhor Humberto. Mandámos as mãos às cordas e içámos a estrutura lá bem alto para que não estorvasse durante a noite. Parece um pássaro de ferro, tão bruto, tão gentil. Amanhã vai resolver mais uma carreira de problemas. Agora dorme, tocado apenas por uma qualquer brisa ocasional, e assim dança, balançando milímetros de olhos fechados.
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Bali e os rapazes, foto de Sofia Maul
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Ece e Abulena, foto de Rui A. Camacho
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Aminah e irmãos Sadiq, foto de Rui A. Camacho
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Alexandra e as redes sociais, foto de Rui A. Camacho
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Assembleia infantil, foto de Rui A. Camacho
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Os rapazes e o jogo, foto de Rui A. Camacho
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O Pássaro de Ferro, foto de Rui A. Camacho
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    Autor

    Rodrigo B. Camacho

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    Quando alguém declara que tem um problema, imaginamos talvez que essa pessoa esteja entalada numa situação complicada, que algo se encalhou, que está impedido, ou mesmo (muito querido o nosso fatalismo) que “está tudo arruinado”.

    Sentimos que a vida se entrava perante um problema, assim que as coisas se emaranham e renunciam o seu funcionamento, descontinuando-se. É todo um bloqueio, uma barreira, uma impossibilidade intransponível!

     
    Contudo, por meio
    de uma escavação
    etimológica feito pela palavra 
    problema adentro, o Rodrigo descobriu que, na sua concepção, a ideia daquilo que um problema deveria ser baseia-se verdadeiramente numa ação bem física, de facto.

    O verbo grego 
    probállō
    é composto por pro (diante, frente) e bállō (lançar, projetar).
    Por isso mesmo, em 
    PROBLEMA, está toda a gente desafiada a resgatar a natureza proativa do termo a atirar umas batatadas aos seus próprios problemas.
     
    Tudo isto fica muitíssimo prático numa instalação audiovisual, cuja interface é – lá está – um saco de boxe! Aproxime-se dele e ser-lhe-á pedido algum problema que por ventura venha a ter no momento.

    Enquanto lhe é entregue um par de luvas, o seu problema já pairará num grande ecrã, e lá permanecerá, pacientemente à espera de qualquer que seja a coisa que você lhe venha a fazer.

    ​ 
    PROBLEMA é um apelo à ação, e é uma advertência, pois frequentemente esquecemo-nos de que temos um corpo; um que é simultaneamente físico, biológico, animal, social, cultural, político...

    O Rodrigo vê este trabalho como uma exploração poética da dicotomia entre as dimensões físicas e intelectuais e quer que a sua experiência sirva de tentativa de reconciliação dos nossos seres multidimensionais
    .

    Rumando via a um sentido de unidade, do infinitésimo ao de figura mais gargântua, do mais simples ao mais complexo, abstrato ou mesmo indescritível, todos os problemas serão bem-vindos para que sejam atirados adiante.
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